A frase de Mahatma Gandhi já deveria ter sido compreendida pela humanidade, mas isso ainda não aconteceu. Para o espanto de milhões de pessoas que não esperavam uma nova guerra, acompanhamos com tristeza o confronto entre Rússia e Ucrânia em 2022. A repetição de uma mesma história.
Há cerca de cem anos, ocorria a Guerra Civil Russa. O conflito teve início com a mobilização do Exército Branco, parte das forças contrarrevolucionárias, contra o Exército Vermelho, dos bolcheviques, grupo que se instalou no poder após a Revolução Russa de 1917. Foi após essa guerra, da qual os bolcheviques saíram vitoriosos, que a União Soviética foi fundada — e a Ucrânia passou a ser uma de suas quinze repúblicas. A consequência dessa guerra foi a fome e a morte de milhões de pessoas.
Um século depois, estamos acompanhando novamente os horrores da guerra na mesma região.
Hoje, o Mulheres de Luta volta cem anos no tempo para relembrar a história de uma ucraniana de nascimento e brasileira de coração que, pelo esforço de seus pais, conseguiu fugir dos horrores da guerra — estes que, infelizmente, percorreram o tempo e voltaram a nos abalar.
UM NASCIMENTO QUE RESISTIU AOS CONFLITOS
“[…] tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.” — trecho da carta que Clarice Lispector enviou ao então presidente Getúlio Vargas, a fim solicitar sua nacionalidade brasileira.
A história da escritora Clarice Lispector começa com o casal de comerciantes judeus ucranianos Mania Krimgold Lispector e Pinkhas Lispector, que se uniram em matrimônio em 1889 por determinação de seus pais. Em 1911 o casal teve a primeira filha, Leah, e em 1915 nasceu Tania.
Dois anos após o nascimento de Tania, ocorre a Revolução Russa, e a situação política do leste europeu começa a se agravar, culminando em uma guerra civil que durou até 1921. Em meio a esse conflito, a família Lispector lutava para vencer a fome e sobreviver aos numerosos ataques contra judeus que tomavam a Europa no começo do século, tanto no lado russo como no ucraniano.
Diante disso, Mania Lispector começa a planejar uma fuga do país. Membros de sua família já tinham conseguido emigrar para a América do Sul, angariando trabalho em instituições judaicas. Inicialmente, Pinkhas não estava receptivo à ideia de sair da Europa, mas com o aumento dos ataques a judeus, acabou concordando com a emigração.
Na época, a agressão aos judeus na região da Ucrânia tinha um nome: pogrom. Pogrom é o termo utilizado para identificar os ataques em massa, premeditados ou não, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias europeias. A onda de pogrom no Império Russo entre 1881 e 1884 tornou a palavra conhecida internacionalmente e provocou a migração de milhares de ucranianos. Estima-se que, até 1920, aproximadamente dois milhões de judeus emigraram do leste europeu.
Em 1918, a família Lispector se muda para a cidade de Haisyn, atualmente uma região de Vinnytsia. A cidade não estava segura dos ataques contra os judeus, atenuados com a guerra civil, e especula-se que, em 1919, durante um desses pogroms, Mania teria sido estuprada por um grupo de soldados russos, contraindo sífilis.
De acordo com o biógrafo de Clarice Lispector, Benjamin Moser, acreditava-se na época que ter um bebê poderia curar a doença. Foi em meio a esse sofrimento e dor que nasceu a terceira filha do casal, em 10 de dezembro de 1920, a menina Haya Pinkhasovna Lispector.
Em 1921, a família Lispector chega à cidade de Soroca, na região da Romênia, e no começo do ano seguinte consegue passaportes válidos para o Brasil, desembarcando em Maceió. A irmã de Mania, Zicela, e seu marido Joseph receberam a família no Brasil. Aqui, os Lispector enfrentam dificuldades financeiras e precisam se acostumar com uma nova vida: nova casa, novos amigos, nova rotina, novo idioma e até mesmo novos nomes. Com exceção de Tania, cujo nome já era familiar em português, Pinkhas passa a se chamar Pedro, Mania torna-se Marieta, Leah vira Elsa, e a pequena Haya ou Chaya adota o nome que ficaria eternizado na literatura brasileira: Clarice Lispector.
Em 1922, Clarice Lispector chegou ao Brasil fugindo da violência, da guerra, da fome e da perseguição. Cem anos depois, ucranianas novamente são obrigadas a deixar suas vidas.
E A HISTÓRIA SE REPETE
Em 1930, Clarice perdeu sua mãe para a sífilis. Clarice estava com nove anos na ocasião. Em seu país de nascimento, outras ucranianas e ucranianos sofriam.
Naquele mesmo ano, a Ucrânia passou por uma crise severa e pelo agravamento da fome. Stalin, sucessor de Lênin, aumentou os impostos de forma exorbitante, levando ao evento que ficou conhecido como holodomor. Holodomor, ou a Grande Fome, se refere ao período entre 1932 e 1933 em que quase 10 milhões de ucranianos morreram na União Soviética em decorrência da fome.
Clarice Lispector faleceu em 1977. Ela não viu a queda da União Soviética e a separação da Ucrânia em 1991, mas outras inúmeras mulheres que viveram essas histórias puderam acompanhar essa conquista. Mas os problemas e conflitos não pararam aí.
A partir de 1991, a Ucrânia se firmou como uma nação independente, mas no leste, especialmente em Donetsk e Luhansk, região do Donbass, os russos, em menor grupo, passaram a reivindicar mais autonomia política. O governo central resistiu a isso. Em 2013, o então presidente da Ucrânia rejeitou um acordo com a União Europeia e se aproximou do governo russo. Os ucranianos não ficaram satisfeitos com isso, o que culminou em protestos que ficaram conhecidos como Euromaidan.
A capital ucraniana, Kiev, foi palco de inúmeros desses protestos que ocorreram entre 2013 e 2014. As mulheres participaram ativamente levando alimentos aos manifestantes, socorrendo os feridos e limpando o gelo das ruas a fim de facilitar o transporte. Entre as trincheiras, milhares de ucranianas eram vistas se deslocando para prestar suporte, mesmo sem nenhum capacete de proteção, ao contrário dos homens.
Em fevereiro de 2014, o então presidente ucraniano Yanukovych renunciou e, em meio ao caos, a Rússia anexou a Crimeia ao seu território. A partir de abril do mesmo ano, os conflitos se intensificam em Donetsk e Luhansk.
De acordo com um relatório produzido pelas ONU, o resultado desses conflitos apontam assassinatos, tortura, espancamentos, desaparecimentos, intimidação e assédio sexual. Cerca de oitenta pessoas desapareceram após os protestos na praça Maidan, em Kiev. Relatos apontam que corpos foram jogados nos rios. Denúncias de abusos e violência sexual de mulheres ucranianas contra soldados russos somam-se a essa conta.
As mulheres que ficaram no Oblast de Donetsk, onde ocorreu o conflito, convivem com traumas e doenças crônicas. Grande parte delas são viúvas que tiveram suas famílias separadas em ambos os lados de batalha. Atualmente, elas voltaram a sofrer os horrores desses conflitos.
Grupos de mulheres que ocupam as mais diversas funções na Ucrânia, professoras, donas de casa, advogadas etc., preparam coquetéis molotov para se defenderem dos soldados russos na cidade de Dnipro. No final de fevereiro de 2022, a cidade, embora não tivesse sido invadida, já estava com seus hospitais ocupados por soldados feridos.
Nas cidades fronteiriças, mulheres das mais variadas faixas etárias preparam suas espingardas. São mães que querem proteger seus filhos, cidadãs que querem defender seu país, mas quando as tropas chegam, quando bombas explodem, a prioridade é defender a vida.
A ONU relatou que até o final de fevereiro cerca de 400 mil pessoas conseguiram fugir da Ucrânia. A maior parte vai para a Polônia, mas também rumam à fronteira da Moldávia, Romênia, Hungria e Eslováquia. Os homens entre 18 e 60 anos são obrigados a ficar na Ucrânia para lutar, então a fila, que chega a ter 15 quilômetros quando próximas à fronteira, é composta sobretudo por mulheres e crianças. São avós, meninas e mães que não sabem se vão voltar para casa e ver seus filhos brincando com os antigos vizinhos. Tudo ficou para trás.
Clarice Lispector não se lembra da Ucrânia, afinal, ela era uma bebê quando partiu para o Brasil. Seus familiares têm a memória, mas a dor é coletiva. No Brasil, a comunidade ucraniana chora à distância junto aos seus. Os descendentes ou nascidos na Ucrânia que vivem no Brasil se preocupam com seus familiares do leste europeu e rezam. Há mais de um milhão de imigrantes ucranianos no país, o maior número da América Latina, experimentando de forma latente o sentimento de impotência.
Algumas mulheres partem pensando que aquela é apenas uma viagem curta e que em breve retornarão aos seus lares, na tentativa de não encarar uma realidade dura e incerta. Outras enfrentam a dor e a constatação de que tudo ficou para trás, e de que talvez não haja volta. Esperamos que todas e todos possamos encontrar uma saída para essa guerra e que as mulheres ucranianas tenham o apoio necessário para viverem de maneira digna e em paz.